sexta-feira, 23 de maio de 2014

Sigmund Freud

Sigmund Freud

Sigmund Freud (Viena,1856 – Londres, 1939), médico austríaco e fundador da psicanálise. Nascido em Freiberg, na Moravia (ou Pribor, na República Tcheca), em 6 de maio de 1856, e chamado Schlomo (Salomo) Sigismund, Sigmund Freud era filho de Amália Freud e de Jacob Freud, e filho mais velho do terceiro casamento de seu pai. Circuncidado ao nascer, o jovem Sigmund recebeu uma educação judaica não tradicionalista e aberta à filosofia do Iluminismo. Era adorado pela mãe, que o chamava “meu Sigi de ouro”, e amado pelo pai, que lhe transmitiu os valores do judaísmo clássico. Tinha uma afeição especial por sua governanta tcheca e católica, Monika Zajic, apelidada Nannie, que o levava para visitar igrejas, falava-lhe do “bom Deus” e lhe revelou outro mundo além do judaísmo e da judeidade.

Talvez ela também tenha desempenhado um papel em sua aprendizagem da sexualidade.Freud nasceu em uma família de abastados comerciantes judeus. Sempre se destaca a complexidade das relações intrafamiliares. Seu pai, Jakob Freud, que exercia o ofício de comerciante de lã e têxteis, casou-se, pela primeira vez, aos 17 anos e teve dois filhos (Emmanuel e Philippe). Viúvo, casa-se novamente com Amália Nathanson, de 20 anos, idade do segundo filho de Jakob. Freud será o mais velho dos oito filhos do segundo casamento de seu pai, e seu companheiro preferido de brinquedos foi seu sobrinho, que tinha um ano a mais do que ele. Do casamento de Jacob e Amália nasceram os seguintes irmãos de Freud: Julius, Anna, Débora (Rosa), Marie (Mitzi), Adolfine (Dolfi), Pauline (Paula) e Alexander.

Quando tinha 3 anos, em outubro de 1859, Jacob e a família deixaram Freiberg, onde seus negócios não prosperavam em virtude da introdução do maquinismo e do desenvolvimento da industrialização o que provocou uma queda dos rendimentos familiares . Instalou-se então em Leipzig, esperando encontrar nessa cidade melhores condições para o comércio de têxteis. Para Freud, essa partida permanecerá sempre dolorosa. Merece ser lembrado um ponto que ele próprio menciona: o amor sem desfalecimentos que sua mãe sempre lhe votou, ao qual atribui a confiança e a segurança que demonstrou em todas as circunstâncias.Por sua vez, Emanuel e Philipp emigraram para Manchester. Um ano depois, não tendo conseguido modificar sua má situação econômica, Jacob decidiu estabelecer-se em Leopoldstrasse, o bairro judeu de Viena. Entre 1865 e 1873, o jovem Sigmund freqüentou o Realgymnasium e depois o Obergymnasium, onde ficou conhecendo Eduard Silberstein, com quem manteve sua primeira grande correspondência intelectual, notadamente a respeito de Franz Brentano.

Nessa época, apaixonou-se por Gisela Fluss, filha de um negociante amigo do seu pai. Mais tarde, fez amizade com Heinrich Braun (1854-1927), que despertaria seu interesse pela política e depois se orientaria para o socialismo.Foi um aluno muito bom em seus estudos secundários, e foi sem uma vocação especial que no outono de 1873, Freud começou seu estudo de medicina. Devem se destacar duas coisas, uma ambição precocemente formulada e reconhecida e “o desejo de contribuir com alguma coisa, durante sua vida, para o conhecimento da humanidade” (“Psicologia dos Estudantes”,1914). Sua curiosidade, “que visava mais às questões humanas do que às coisas da natureza” (“Um Estudo Autobiográfico” [Selbstdarstellung],1925) leva-o a acompanhar, ao mesmo tempo, durante três anos, as conferências de F. Brentano, várias delas dedicadas a Aristóteles. Em 1880, publicou a tradução de vários textos de J.S.Mill: “Sobre a emancipação da mulher”, “Platão”, “A questão operária”, “O socialismo”.Em setembro de 1886, depois de um noivado de vários anos, desposa Martha Bernays, com quem terá cinco filhos. Em 1883, é nomeado docente-privado (que equivale, na França, ao título de mestre conferencista) e professor honorário em 1902.

Apesar de todos os tipos de hostilidade e dificuldades, Freud sempre se recusará a abandonar Viena. Foi somente pela pressão de seus alunos e amigos e depois do “Anschluss” de março de 1938 que irá finalmente se decidir, dois meses mais tarde, a partir para Londres.Apaixonou-se pela ciência positiva, e principalmente pela biologia darwiniana (que serviria de modelo para todos os seus trabalhos). Em 1874, pensou em ir a Berlim, para freqüentar os cursos de Hermann von Helmholtz. Um ano depois, com o estímulo de Carl Claus, seu professor de zoologia, obteve uma bolsa de estudos que lhe permitiu ir a Trieste estudar a vida das enguias (machos) de rio. Sua primeira publicação data de 1877: “Sobre a Origem das Raízes Nervosas Posteriores da Medula Espinhal dos Amoceta” (Petromyzon planeli), enquanto a última, referente às Paralisias cerebrais infantis, de 1897, esse texto mostra que Freud trabalhava na elaboração de uma teoria do funcionamento específico das células nervosas (os futuros neurônios), como se veria em seu “Projeto para uma psicologia científica” de 1895. Durante esses 20 anos, pode-se reunir 40 artigos (fisiologia e anátomo-histologia do sistema nervoso).Freud entrou no Instituto de Fisiologia, dirigido por E.Brücke, após três anos de estudos médicos, em 1876.

Depois dessa experiência, Freud passou do instinto de zoologia para o de fisiologia, tornando-se aluno de Ernst Wilhelm von Brucke, eminente representante da escola antivitalista fundada por Helmholtz. Foi nesse instituto, onde ficou seis anos, que fez amizade com Josef Breuer. Entre 1879 e 1880, forçado a uma licença para cumprir o serviço militar, enganava o tédio traduzindo quatro ensaios de John Stuart Mill (1806-1873), sob a direção de Theodor Gomperz (1832-1912), escritor e helenista austríaco, responsável pela publicação alemã das obras completas desse filósofo inglês, teórico do liberalismo político.O trabalho de Freud sobre a afasia (Uma concepção da afasia, estudo crítico[Zur Auffassung der Aphasien], 1891) permanecerá na sombra, embora ofereça a mais aprofundada e notável elaboração da afasiologia da época. Suas esperanças de notoriedade tampouco foram satisfeitas por seus trabalhos sobre a cocaína, publicados de 1884 a 1887.

Havia descoberto as propriedades analgésicas dessa substância, negligenciando as propriedades anestésicas, que seriam utilizadas com sucesso por K.Koller. A lembrança desse fracasso vai ser um dos elementos que originaram a elaboração de um sonho de Freud, a “monografia botânica”.Freud se encontrava, no início da década de 1880, na posição de pesquisador em neurofisiologia e de autor de trabalhos de valor, mas que não lhe permitia, por falta de assegurar a subsistência de uma família. Apesar de suas reticências, a única oferecida era abrir um consultório de neurologista na cidade, o que fez, de forma surpreendente, no domingo de Páscoa, 25 de abril de 1886.Em 1882, depois de obter seu diploma, ficou noivo de Martha Bernays (Martha Freud), que se tornaria sua mulher. Por razões financeiras, renunciou então à carreira de pesquisador e decidiu tornar-se clínico. Nos três anos seguintes, trabalhou no Hospital Geral de Viena, primeiro no serviço de Hermann Nothnagel, depois no de Theodor Meynert. Ali, ficou conhecendo Nathan Weiss (1851-1883), e quando esse novo amigo se suicidou por enforcamento, Freud ficou transtornado. “Sua vida, escreveu a Martha, parece ter sido a de um personagem de romance, e sua morte uma catástrofe inevitável.”Pensando em tornar-se célebre e libertar-se da pobreza para poder se casar, acreditava ter descoberto as virtudes da cocaína e administrou-a a seu amigo Ernst von Fleischl-Marxow, que sofria de uma doença incurável. Não percebia a dependência induzida pela droga e ignorava tudo sobre sua ação anestesiante, que seria descoberta por Carl Koller.

Em 1885, nomeado “Privatdozent” de neurologia, Freud obteve uma bolsa de estudos graças à qual pudera realizar um de seus sonhos, ir a Paris. Queria muito encontrar-se com Jean Martin Charcot, cujas experiências sobre a histeria o fascinavam. Foi assim que teve um encontro determinante, na Salpêtrière, com Charcot. Deve-se observar que Charcot não se mostrou interessado nem pelos cortes histológicos que Freud lhe levou, como prova de seus trabalhos, nem pelo relato do tratamento de Anna O., cujos elementos clínicos principais seu amigo J. Breuer lhe tinha comunicado, a partir de 1882. Charcot quase não se interessava pela terapêutica, preocupando-se em descrever e classificar os fenômenos para tentar explica-los de forma racional.Essa primeira permanência na França marcou o início da grande aventura científica que o levaria à invenção da psicanálise.

No Teatro Saint-Martin, Freud assistiu maravilhado à representação de uma peça de Victorien Sardou, interpretada por Sarah Bernhardt: “Nunca uma atriz me surpreendeu tanto; eu estava pronto a acreditar em tudo o que ela dizia.” Depois de Paris, foi a Berlim, onde fez os cursos do pediatra Adolf Baginsky.De volta a Viena, instalou-se como médico particular, abrindo um consultório na Rathausstrasse. Freud também trabalhava, três tardes por semana, como neurologista na Clínica Steindlgasse, primeiro instituto público de pediatria, dirigido pelo professor Max Kassowitz (1842-1913). Em setembro de 1886, casou-se com Martha, e no dia 15 de outubro fez uma conferência sobre a histeria masculina na Sociedade dos Médicos, onde teve uma acolhida glacial, não em razão de suas teses (etiológicas), como diria depois, mas porque atribuía a Charcot a paternidade de noções que já eram conhecidas pelos médicos vienenses.Em 1887, um mês depois do nascimento de sua filha Mathilde (Hollitscher), Freud ficou conhecendo Wilhelm Fliess, brilhante médico judeu berlinense, que fazia amplas pesquisas sobre a fisiologia e a bissexualidade. Era o início de uma longa amizade e de uma soberba correspondência íntima e científica. Apesar de várias tentativas, Fliess não conseguiria curar Freud de sua paixão pelo fumo: “Comecei a fumar aos 24 anos, escreveu em 1929, primeiro cigarros, e logo exclusivamente charutos [...]. Penso que devo ao charuto um grande aumento da minha capacidade de trabalho e um melhor autocontrole.”Freud começa a utilizar os meios de que dispunha, a eletroterapia de W.H. Erb, a hipnose e a sugestão. As dificuldades encontradas levam-no a se ligar a A.A. Liébault e H. M. Bernheim, em Nancy, durante o verão de 1889. Traduz, aliás, as obras deste último para o alemão. Encontra nelas a confirmação das reservas e decepções que ele próprio sentia por tais métodos.Em setembro de 1891, Freud mudou-se para um apartamento situado no número 19 da rua Berggasse. Ficou ali até seu exílio em 1938, cercado por seus seis filhos (Mathilde, Mrtin, Oliver, Ernst, Sophie Halberstadt, Anna) e de sua cunhada Minna Bernays.

Como clínico, tratava essencialmente de mulheres da burguesia vienense, qualificadas como “doentes dos nervos” e sofrendo de distúrbios histéricos. Abandonando o niilismo terapêutico, tão comum nos meios médicos vienenses da época, procurou, ante de tudo, curar e tratar de suas pacientes, aliviando os seus sofrimentos psíquicos. Durante um ano, utilizou os métodos terapêuticos aceitos na época: massagens, hidroterapia, eletroterpia. Mas logo constatou que esses tratamentos não tinham nenhum efeito. Assim começou a utilizar a hipnose, inspirando-se nos métodos de sugestão de Hippolyte Bernheim, a quem fez uma visita por ocasião do primeiro congresso internacional de hipnotismo, que se realizou em Paris em 1889. Em 1891, publicou uma monografia, “Contribuição à concepção das afasias”, na qual se baseava nas teorias de Hughlings Jackson para propor uma abordagem funcional, e não mais apenas neurofisiológica, dos distúrbios de linguagem. A doutrina das “localizações cerebrais” era substituída pelo associacionismo, que abria caminho para a definição de um “aparelho psíquico” tal como se encontraria na metapsicologia: ele faz sua primeira formulação em 1896 e estabelece seus fundamentos no capítulo VII da “Interpretação dos Sonhos”.Em 1890, consegue convencer seu amigo Breuer a escrever com ele uma obra sobre a histeria. Seu trabalho em comum dará lugar à publicação, em 1893, de “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar”, que irá abrir caminho para “Estudos sobre a histeria”; já se encontra nele a idéia freudiana de defesa, para proteger o sujeito de uma representação “insuportável” ou “incompatível”. No mesmo ano, em um texto intitulado “Algumas Considerações para um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas”, publicado em francês em “Archives neurologiques”, Freud afirma que “a histeria se comporta, nessas paralisias e outras manifestações, como se a anatomia não existisse, ou como se ela não tomasse disso nenhum conhecimento”.

Os “Estudos sobre a histeria”, obra comum de Breuer e Freud, são publicados em junho de 1895. A obra comporta, além da Comunicação Preliminar, cinco observações de doentes: a primeira – de Anna O (Bertha Pappenheim) – é redigida por Breuer e é nela que se encontra a expressão tão feliz “Talking Cure”, proposta por Anna O; as quatro seguintes devem-se a Freud. A obra conclui com um texto teórico de Breuer e um outro sobre a psicoterapia da histeria, de Freud, onde se pode ver o início do que irá separar os dois autores no ano seguinte.Em “L’ Hérédité et l’Étiologie dês Névroses”, publicado em francês, em 1896, na “Revue neurologique”, Freud de fato afirma: “Experiência de passividade sexual antes antes da puberdade; é essa, pois, a etiologia específica da histeria”. No artigo, é empregado pela primeira vez o termo “psicanálise”. Foi também durante esses anos que a reflexão de Freud sobre a súbita interrupção feita for Breuer no tratamento de Anna O levou-o a conceber a transferência.Finalmente, deve-se assinalar a redação, em poucas semanas, no final de 1895, de “Projeto para uma Psicologia Científica” (Entwurf einer Psychologie), que Freud nunca irá publicar e que constitui, no começo, sua última tentativa de apoiar a psicologia sobre os dados mais recentes da neurofisiologia.

Trabalhando ao lado de Breuer, Freud abandonou progressivamente a hipnose pela catarse, inventou o método da associação livre, e enfim a psico-análise. Essa palavra foi empregada pela primeira vez em 1896, e sua invenção foi atribuída a Breuer. Em 1897, com um relatório favorável de Nothnagel e de Richard von Krafft-Ebing, o nome de Freud foi proposto para receber o prestigioso título de professor extraordinário. Sua nomeação foi ratificada pelo imperador Francisco-José no dia 5 de março de 1902.Ao contrário de muitos intelectuais vienenses marcados pelo “ódio de si judeu”, Freud, judeu infiel e incrédulo, hostil a todos os rituais e à religião, nunca negaria sua judeidade. Como enfatizou Manès Sperber, ele continuaria sendo “um judeu consciente, que não dissimulava a ninguém sua origem, proclamando-a, ao contrário, com dignidade e freqüentemente com orgulho. Muitas vezes, afirmou que detestava Viena e que se sentia como que libertado a cada vez que se afastava dessa cidade, onde crescera e à qual ficaria ligado, entretanto, por laços indestrutíveis.

Sua consciência da identidade judaica permaneceria assim, pois sua origem nunca foi para ele uma fonte de sentimentos de inferioridade, embora ela lhe causasse problemas e dificuldades suplementares, principalmente em sua vida profissional”.Sua posição doutrinária está centrada na teoria do núcleo patogênico, constituído na infância, por ocasião de um trauma sexual real, decorrente da sedução por um adulto. O sintoma é a conseqüência do recalcamento das representações insuportáveis que constituem esse núcleo, e o tratamento consiste em trazer a consciência os elementos, como se extrai um “corpo estranho” , sendo a conseqüência do levantamento do recalque o desaparecimento do sintoma.Durante alguns dos anos que antecederam a publicação de “A interpretação de sonhos”, Freud introduz na nosografia, à qual não é indiferente, alguma entidade nova. Descreve a neurose de angústia, separando-a da categoria bastante heteróclita da neurastenia. Isola, pela primeira vez, a neurose obsessiva (alem. Zwangsneurose) e propõe o conceito de psiconeurose de defesa, no qual é integrada a paranóia.Porém, sua principal tarefa é a auto-análise, termo que irá empregar por pouco tempo. Eis o que diz sobre isto, na carta a W.Fliess, de 14 de novembro de 1887: “Minha auto-análise continua sempre em projeto, agora compreendi o motivo. É porque não posso analisar a mim mesmo a não ser me servindo de conhecimentos adquiridos objetivamente (como para um estranho). Uma verdadeira auto-análise é realmente impossível, de outro modo não haveria mais doença”.No âmbito de sua amizade com Fliess, ocorreram vários acontecimentos maiores na vida de Freud: sua auto-análise, um intercâmbio de caso (Emma Eckstein), a publicação de um primeiro grande livro, “Estudos sobre a histeria”, no qual são relatadas várias histórias de mulheres (Bertha Pappenheim, Fanny Moser, Aurélia Öhm, Anna von Lieben, Lucy, Elisabeth von R., Mathilde H., Rosalie H.), e enfim o abandono da teoria da sedução segundo a qual toda neurose se explicaria por um trauma real. Essa renúncia, fundamental para a história da psicanálise, ocorreu em 21 de setembro de 1897. Freud comunicou-a a Fliesse em tom enfático, em uma carta que se tornaria célebre: “Não acredito mais na minha Neurótica.”O encontro com Fliess remonta a 1887.

Freud começa a analisar sistematicamente seus sonhos, a partir de julho de 1895. Tudo se passa como se Freud, sem antes se dar conta disso, tivesse utilizado Fliess como intérprete, para efetuar sua própria análise. Seu pai morreu em 23 de outubro de 1896. Poder-se-ia pensar que tal acontecimento não foi estranho à descoberta do complexo de Édipo, do qual se encontra, um ano mais tarde, na carta a Fliess de 15 de outubro de 1897, a seguinte primeira formulação esquemática: “Acorreu-me ao espírito uma única idéia, de valor geral. Encontrei em mim, como em todo lugar, sentimentos de amor para com minha mãe e de ciúme para com meu pai, sentimentos que são, acho eu, comuns a todas as crianças pequenas, mesmo quando seu aparecimento não é tão precoce como nas crianças que se tornaram histéricas (de uma forma análoga à da romantização original nos paranóicos, heróis e fundadores de religiões). Se isso for assim, pode-se compreender, apesar de todas as objeções racionais que se opõem à hipótese de uma fatalidade inexorável, o efeito percebido em ‘Édipo rei’.

Também se pode compreender por que todos os dramas mais recentes do destino deveriam acabar miseravelmente...mas a lenda grega percebeu uma compulsão que todos reconhecem, pois todos a”. sentiram. Cada ouvinte foi, um dia, em germe, em imaginação, um Édipo, e espanta-se diante da realização de seu sonho, transportado para a realidade, estremecendo conforme o tamanho do recalcamento que separa seu estado infantil de seu estado atual”. Começou então a elaborar sua doutrina da fantasia, concebendo em seguida uma nova teoria do sonho e do inconsciente , centrada no recalcamento e no complexo de Édipo. Seu interesse pela tragédia de Sófocles foi contemporâneo de sua paixão por Hamlet. Freud era um grande leitor de literatura inglesa, alimentando-se especialmente da obra de Shakespeare: “Uma idéia atravessou o meu espírito, escreveu a Fliess em 1897, de que o conflito edipiano encenado em ‘Édipo rei’ de Sófocles poderia estar também no cerne de Hamlet. Não acredito em uma intenção consciente de Shakespeare, mas, antes, que um acontecimento real levou o poeta a escrever esse drama, tendo seu próprio inconsciente lhe permitido compreender o inconsciente do seu herói.” A ruptura definitiva com Fliess ocorrerá em 1902.Depois de 1926, e a despeito de uma longa discussão com James Strachey, Freud acabaria cedendo à crença segundo a qual Shakespeare não era o autor de sua obra.

Aliás, esse tema do deslocamento da atribuição de uma paternidade ou de uma identidade se encontraria por várias vezes em sua obra, principalmente em “Moisés e o monoteísmo”, na qual fez de Moisés um egípcio.Da nova teoria do inconsciente nasceria um segundo grande livro, publicado em novembro de 1899, “A Interpretação dos Sonhos” (Die Traumdeutung), no qual é relatado o sonho da “Injeção de Irmã”, ocorrido quando Freud estava em Bellevue, em julho de 1895, em um pequeno castelo na floresta vienense: “Você acredita, (escreveu a Fliess no dia 12 de julho de 1900), que haverá um dia nesta casa uma placa de mármore com esta inscrição: Foi nesta casa que, em 24 de julho de 1895, o ministério do sonho foi revelado ao doutor Sigmund Freud? Até agora, tenho pouca esperança.” O postulado inicial introduz uma ruptura radical com todos os discursos anteriores. O absurdo, a incongruência dos sonhos não é um acidente de ordem mecânica; o sonho tem um sentido, esse sentido está escondido e não decorre das figuras utilizadas pelo sonho, mas de um conjunto de elementos pertencentes ao próprio sonhador, fazendo com que a descoberta do sentido oculto dependa das “associações” produzidas pelo sujeito. Exclui-se, portanto, que esse sentido possa ser determinado sem a colaboração do sonhador.Aquilo com que estamos lidando é um texto; sem dúvida, o sonho é constituído principalmente de imagens, mas o acesso a elas só pode ser obtido pela narrativa do sonhador, que constitui seu “conteúdo manifesto”, que é preciso decifrar, como Champollion fez com os hieróglifos egípcios, para descobrir seu “conteúdo latente”.

O sonho é constituído como os “restos diurnos”, aos quais são transferidos os investimentos afetados pelas representações de desejo. O sonho, ao mesmo tempo em que protege o sono, assegura, de uma forma camuflada, uma certa “realização de desejo”. A elaboração do sonho é feita por técnicas especiais, estranhas ao pensamento consciente, a condensação (um mesmo elemento representava vários pensamentos do sonho) e o deslocamento (um elemento do sonho é colocado no lugar de um pensamento latente).Resultam dessa concepção do sonho uma estrutura particular do aparelho psíquico, que foi objeto do sétimo e último capítulo. Mais do que a divisão em três instâncias, consciente, pré-consciente e inconsciente, que especifica o que se chama de primeira tópica, convém conservar a idéia de uma divisão do psiquismo em dois tipos de instâncias, obedecendo a leis diferentes e separadas por uma fronteira que só pode ser ultrapassada em determinadas condições, consciente-pré-consciente, por um lado, inconsciente, por outro. Esse corte é radical e irredutível, nunca poderá haver “síntese”, mas apenas “tendência à síntese”. O sentimento próprio ao eu da unidade que constitui nosso mental não é mais do que uma ilusão. Um aparelho desse tipo torna problemática a apreensão da realidade, que deve ser constituída pelo sujeito.

A posição de Freud, aqui, é a mesma expressa no “Projeto”: “O inconsciente é o próprio psíquico e sua realidade essencial. Sua natureza íntima nos é tão desconhecida como a realidade do mundo exterior, e a consciência nos ensina sobre ela de uma maneira tão incompleta como nossos órgãos dos sentidos sobre o mundo exterior”.Para Freud, o sonho se encontra em uma espécie de encruzilhada entre o normal e o patológico, e as conclusões concernentes ao sonho serão consideradas por ele como válidas para explicar os estados neuróticos.“A psicopatologia da vida cotidiana” (Zur Psychopathologie dês Alltagslebens) é publicado no ano seguinte, em 1901. Ela começa, por exemplo, com um esquecimento de nome, o de Signorelli, análise já publicada por Freud em 1898; o esquecimento associa, em sua determinação, tanto com motivos sexuais como a idéia de morte. A obra reúne toda uma série de pequenos acidentes, aos quais quase não se dá, via de regra, nenhuma atenção, como os esquecimentos de palavras, as “lembranças encobridoras”, os lapsos da palavra ou escrita, os erros de leitura e escrita, os equívocos, os atos falhos, etc.Esses fatos podem ser considerados como manifestações do inconsciente, nas seguintes três condições: 1.não deve ultrapassar um certo limite fixado por nosso juízo, isto é, aquilo que chamamos de “os limites do ato normal”; 2.devem ter caráter de um distúrbio momentâneo; 3.não podem ser caracterizados assim a não ser que os motivos nos escapem e que fiquemos reduzidos a invocar o “acaso” ou a “falta de atenção”.“Ao colocar os atos falhos na mesma categoria das manifestações das psiconeuroses, damos um sentido e uma base a duas afirmativas que ouve repetir com freqüência, a saber, que entre o estado nervoso normal e o funcionamento nervoso anormal, não existe um limite claro e marcado (...). Todos os fenômenos em questão, sem nenhuma exceção, permitem que se chegue aos materiais psíquicos reprimidos incompletamente e que, embora recalcados pela consciência, não perderam toda a possibilidade de se manifestar e se exprimir”.

O terceiro texto, “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (Der Witz und seine Beziehung zum Unbewuften), é publicado em 1905. Diante desse material logo e difícil, alguns se perguntaram por que Freud tinha julgado necessário acumular uma quantidade tão grande de exemplos, com uma classificação complicada. Sem dúvida, porque suas teses eram difíceis de pôr em evidência. Eis as principais. “O espírito reside apenas na expressão verbal”. Os mecanismos são os mesmos do sonho, a condensação e o deslocamento. O prazer que o espírito engendra está ligado à técnica e à tendência satisfeita, hostil ou obscena. Porém, um terceiro ocupa sobretudo nele um papel principal, e é isso o que o distingue do cômico. “O espírito em geral precisa da intervenção de três personagens: aquele que faz a palavra, aquele que se diverte com a verve hostil ou sexual e, enfim, aquele no qual é realizada a intenção do espírito, que é a de produzir prazer”. Finalmente: “Só é espirituoso aquilo que é aceito como tal”.

Compreende-se então a dificuldade para traduzir a palavra alemã “Witz”, que não tem equivalente em francês, mas também a dificuldade de seu manejo em alemão, por aquilo que acaba de ser lembrado e pela diversidade dos exemplos utilizados, histórias engraçadas, chistes, trocadilhos, etc. A especificidade do “Witz” explica a atenção que Freud tem em distingui-lo do cômico, distinção assim resumida: “O espírito é, por assim dizer, para o cômico, a contribuição que lhe vem do domínio do inconsciente”.No mesmo ano, surgem os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie), onde é afirmada e ilustrada a importância da sexualidade infantil e proposto um esquema da evolução da libido, por suas fases caracterizadas pela sucessiva dominância das zonas erógenas bucal, anal e genital. Nesse texto a criança, em relação à sexualidade, é definida como um “perverso polimorfo”, e a neurose é situada como “o negativo da perversão”.Mais ou menos entre 1905 e 1918, irão se suceder um grande número de textos referentes à técnica e, para ilustra-la, apresentações de casos clínicos. Entre estes últimos estão as “Cinco psicanálises”:Em 1905, “Fragmento da análise de um caso de histeria”: observação de uma paciente chamada Dora, centrada em dois sonhos principais, cujo trabalho de interpretação ocupa sua maior parte.Em 1909, “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” (o pequeno Hans): Freud verifica a exatidão das “reconstituições” efetuadas no adulto.

Também em 1909, “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (O Homem dos Ratos): a análise é dominada por um voto inconsciente de morte, e Freud se espanta ao verificar, “ainda mais” em um obsessivo, as descobertas feitas no estudo da histeria.Em 1911, “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” (Dementia paranoides) (o presidente Schreber): a particularidade dessa análise se prende ao fato de que Freud nunca encontrou o paciente, contentando-se em trabalhar com as “Memórias” nas quais este descrevera sua doença, dando a elas um interesse científico.Finalmente, em 1918, “História de uma neurose infantil” (O Homem dos Lobos): a observação foi para Freud de particular importância. Ela fornecia a prova da existência, na criança, de uma neurose perfeitamente constituída, seja ela aparente ou não, nada mais sendo a do adulto do que uma exteriorização e repetição da neurose infantil; ela demonstrou a importância dos motivos libidinais e a ausência de aspirações culturais, ao contrário de C. Jung; ela forneceu uma exata ilustração da constituição do fantasma e do lugar da cena primitiva.Em 1902, com Alfred Adler, Wilhelm Stekel, Max Kahane (1866-1923) e Rudolf Reitler (1865-1917), fundou a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, primeiro círculo da história do freudismo. Durante os anos que se seguiram, muitas personalidades do mundo vienense se juntaram ao grupo: Paul Federn, Otto Rank, Fritz Wittels, Isidor Sadger.

Foi durante essas reuniões que se elaborou a idéia de uma possível aplicação da psicanálise a todas as áreas do saber: literatura, antropologia, história, etc. O próprio Freud defendeu a noção de psicanálise aplicada, publicando uma fantasia literária: “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907)”.Em 1907 e 1908, o círculo dos primeiros discípulos freudianos se ampliou ainda mais, com a adesão à psicanálise de Hanns Sachs, Sandor Ferenczi, Karl Abraham, Ernest Jones, Abraham Arden Brill e Max Eitingon.Durante o primeiro quarto do século, a doutrina freudiana se implantou em vários países: Grã-Bretanha, Hungria, Alemanha, costa leste dos Estados Unidos. Na Suíça produziu-se um acontecimento maior na história do movimento psicanalítico : Eugen Bleuler, médico-chefe da clínica do Hospital Burghölzli de Zurique, começou a aplicar o método psicanalítico ao tratamento das psicoses, inventando ao mesmo tempo a noção de esquizofrenia. Uma nova “terra prometida” se abriu assim à doutrina freudiana: ela podia a partir de então investir o saber psiquiátrico e tentar dar uma solução para o enigma da loucura humana.No dia 3 de março de 1907, Carl Gustav Jung, aluno e assistente de Bleuler, foi a Viena para conhecer Freud. Depois de várias horas de conversa, ficou encantado com esse novo mestre. Seria o primeiro discípulo não-judeu de Freud.

Em 1909, a convite de Grandville Stanley Hall, Freud foi, em companhia de Jung e de Ferenczi, à Clark University de Worcester, em Massachusetts, para dar cinco conferências, que seriam reunidas sob o título de “Cinco lições de psicanálise”. Apesar de um encontro produtivo com James Jackson Putnam e de um sucesso considerável, Freud não gostou do continente americano. Durante toda a vida, desconfiaria do espírito pragmático e puritado desse país que acolhia suas idéias com entusiasmo ingênuo e desconcertante.Temendo o anti-semitismo e que a psicanálise fosse assimilada a uma “ciência-judaica”, Freud decidiu “desjudalizá-la”, pondo Jung à frente, como presidente, do movimento. Depois de um primeiro congresso, que reuniu em Salzburgo em 1908 todas as sociedades locais, criou com Ferenczi, em Nuremberg, em 1910, uma associação internacional, a Sociedade Psicanalítica de Viena “Internationale Psychoanalytische Vereinigung” (IPV). Em 1933, a sigla alemã seria abandonada. A IPV se tornaria então a Associação Internacional de Psicanálise “International Psychoanalytical Association” (IPA).Entre 1909 e 1913, Freud publicou mais duas obras: “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910) e “Totem e tabu” (1912-1913). A partir de 1910, a expansão do movimento se traduziu por dissidências, tendo como motivo simultaneamente quer elas pessoais e questões teóricas e técnicas. Às rivalidades narcísicas se acrescentaram críticas sobre a duração dos tratamentos, a questão da transferência e da contratransferência, o lugar da sexualidade e a definição da noção de inconsciente.

Inicialmente, está a questão do pai, tratada com uma excepcional amplidão, em “Totem e tabu”, e retomada a partir de um exemplo particular, em “Moisés e o monoteísmo” (1932-1938). Ela constitui um dos pontos mais difíceis da doutrina de Freud, devido ao polimorfismo da função paterna em sua obra. Mais tarde, foi o conceito de narcisismo que foi objeto do grande artigo em 1914, “Sobre o narcisismo: uma introdução”, necessária para levantar as dificuldades encontradas na análise de Schreber e tentar explicar as psicoses, mas também para esboçar uma teoria do eu. “O estranho” (Das Unheimliche), publicado em 1919, refere-se especialmente à problemática da castração. Porém, a maior alteração decorreu da conceitualização do automatismo de repetição e do instinto de morte, que são o assunto de “Além do princípio de prazer” (Jenseits dês Lustprinzips, 1920). A teoria do eu e da identificação serão os temas centrais de “Psicologia de grupo e análise do ego” (Massenpsychologie umd Ich-Analyse, 1921).Finalmente, “A Negativa” (Die Verneinung, 1925) irá sublinhar a primazia da palavra, na experiência psicanalítica, ao mesmo tempo em que define um modo particular de presentificação do inconsciente.Freud nunca deixou de tentar reunir, em uma visão que chama de metapsicologia, as descobertas que sua técnica permitiu e as elaborações que nunca deixaram de acompanhar sua prática, mesmo afirmando que esse esforço não deveria ser interpretado como uma tentativa de constituição de uma nova “visão do mundo” (Weltanschauung).Certos remanejamentos valem como correções de posições anteriores.

Este é o caso da teoria do fantasma que, por volta de 1910, irá substituir a primeira teoria traumática da sedução precoce (Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, 1907; Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, 1911; “O Homem dos Lobos”, 1918).Esse também foi o caso do masoquismo, considerado, num primeiro momento, como uma inversão do sadismo. As teses de “Além do princípio do prazer” permitirão a concepção de um masoquismo primário, que Freud será levado a tornar equivalente, em “O problema econômico do masoquismo” (1925), ao instinto de morte e ao sentimento de culpa irredutível e inexplicado, revelado por certas análises.De forma sem dúvida arbitrária, pode-se classificar, nos remanejamentos tornados necessários devido ao desgaste dos termos (embora muitos outros motivos o justifiquem), a introdução da segunda tópica, constituída pela três instâncias, isso, eu e supereu (O ego e o id [Das Ich und das Es], 1923), as novas considerações sobre a angústia, como sinal de perigo (Inibições, sintomas e ansiedade/angústia [Hemmung, Symptom und Angst], 1926) e, finalmente, o último texto, inacabado, “A divisão do ego no processo de defesa (Die Ichspaltung im Abwehvorgang, 1938), no qual Freud anuncia que, apesar das aparências, o que irá dizer, referindo-se à observação do artigo de 1927, sobre o fetichismo, também era então totalmente novo. E, de fato, as formulações nele propostas apresentem-se como um esboço de uma remodelagem de toda a economia de sua doutrina.”Na obra de Freud, dois textos possuem, aparentemente, um estatuto um tanto especial.

São eles “O futuro de uma ilusão” (Die Zukunft einer Illusion), publicado em 1927, que examina a questão da religião, e “O mal-estar na civilização” (Das Unbehagen in der Kultur, 1929), dedicado ao problema da felicidade, considerada pro Freud inatingível, e às exigências exorbitantes da organização social ao sujeito humano.De fato, trata-se da consideração de fenômenos sociais, à luz da experiência psicanalítica. Na realidade, como sempre acontece com Freud, o ângulo escolhido para tratar de qualquer questão serve-lhe, antes de tudo, para dar esclarecimentos ou indicações sobre aspectos importantes da experiência. Isso ocorre, em “O Futuro”, com a questão do pai e a de Deus, como seu corolário; em “O mal-estar”, a maldade fundamental do ser humano e a constatação paradoxal de que quanto mais o sujeito satisfaz os imperativos morais, os do supereu, mais este se mostra exigente. Em 1911, Adler e Stekel se separaram do grupo freudiano. Dois anos depois, Jung e Freud romperam todas as suas relações. Não suportando desvios em relação à sua doutrina, Freud publicou, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, um verdadeiro panfleto, “A história do movimento psicanalítico”, no qual denunciou as traições de Jung e Adler. Depois, criou um Comitê Secreto, composto de seus melhores paladinos, aos quais distribuiu um anel de fidelidade.Longe de evitar as dissidências, essa iniciativa levou a novas querelas. Apoiados por Jones, os berlinenses (Abraham e Eitingon) preconizava a ortodoxia institucional, enquanto os austro-húngaros (Rank e Ferenczi) se interessavam mais pelas inovações técnicas. Uma nova dissidência marcou ainda a história desse primeiro freudismo: a de Wilhelm Reich.Por volta de 1930, o fenômeno da dissidência deu lugar às cisões, característica da transformação da psicanálise em um movimento de massa. A partir daí eram os grupos que se enfrentavam, não mais os discípulos ou os pioneiros em rivalidade com o mestre. Isolado em Viena, mas célebre no mundo inteiro, Freud prosseguiu sua obra, sem conseguir controlar a política de seu movimento. Entre 1919 e 1933, a IPA se transformou em uma verdadeira máquina burocrática, com a responsabilidade de resolver todos os problemas técnicos relativos à formação dos psicanalistas.

No fim da Primeira Guerra Mundial, a discussão sobre o caráter traumático das afecções psíquicas foi relançada, com o aparecimento das neuroses de guerra. Freud foi então confrontado com seu velho rival Julius Wagner Jauregg, acusado de ter submetido soldados julgados simuladores a inúteis tratamentos elétricos. Nesse debate, Freud interveio de maneira magistral para demonstrar a superioridade da psicanálise sobre todos os outros métodos.Com o desmoronamento do império austro-húngaro, Berlim se tornou a capital do freudismo, como provou a criação do Berliner Psychoanalytisches Institut (BPI), e as numerosas atividades do instituto de Frankfurt em torno de Otto Fenichel e da “esquerda freudiana”. Enquanto os americanos afluíam a Viena para se formar no divã do mestre, este analisava a própria filha, Anna Freud. Esta não tardaria a tornar-se chefe de escola e opor-se a Melanie Klein, sua principal rival no campo da psicanálise de crianças. Nesse aspecto, a oposição entre a escola vienense, que se desenvolveu na IPA a partir de 1924 e que girava em torno da questão da sexualidade feminina, mostrou o lugar cada vez mais importante das mulheres no movimento psicanalítico. No centro dessa polêmica, Freud manteve sua teoria da libido única e do falocentrismo, sem com isso mostrar-se misógino.

Ligado em sua vida particular a uma concepção burguesa da família patriarcal, adotava todavia, em suas amizades com mulheres intelectuais, uma atitude perfeitamente cortês, moderna e igualitária. Por sua doutrina e por sua condição de terapeuta, desempenhou um papel na emancipação feminina.Nos anos 1920, Freud publicou três obras fundamentais, através das quais definiu sua segunda tópica e remanejou inteiramente sua teoria do inconsciente e do dualismo pulsional: “Mais-além do princípio do prazer” (1920), “`Psicologia das massas e análise do eu” (1921), “O eu e o isso” (1923). Esse movimento de reformulação conceitual já começara em 1914, quando da publicação de um artigo dedicado à questão do narcisismo. Confirmou-se, em 1915, com a elaboração de uma metapsicologia e a publicação de um ensaio sobre a guerra e a morte, no qual Freud sublinhava a necessidade para o sujeito de “organizar-se em vista da morte, a fim de melhor suportar a vida”. Dessa reformulação, centrada na dialética da vida e da morte e em uma acentuação da oposição entre o eu e o isso, nasceriam as diferentes correntes do freudismo moderno: kleinismo, Ego Psychology, Self Psychology, lacanismo, annafreudismo, Independentes.Para postular a existência de uma pulsão de morte, Freud revalorizou duas figuras da mitologia grega: Eros e Tânatos. Essa revisão da doutrina original se produziu em um momento em que a sociedade vienense, já preocupada com a sua própria morte desde o fim do século, se confrontava com a negação absoluta de sua identidade: a Áustria dessa época, como enfatizou Stefan Zweig, era, no mapa da Europa, apenas “uma luz crepuscular”, uma “sombra cinzenta, difusa e sem vida, da antiga monarquia imperial”.

Em fevereiro de 1923, Freud descobriu, do lado direito de seu palato, um pequeno tumor, que devia ser logo extirpado. Em um primeiro tempo, Felix Deutsch, seu médico, lhe ocultou a natureza maligna desse tumor. Freud se indispôs com ele. Seis meses depois, Hans Pichler, cirurgião vienense, procedeu a uma intervenção radical: a ablação dos maxilares e da parte direita do palato. Trinta e uma operções seriam feitas posteriormente, sob a supervisão de Max Schur. Freud foi obrigado a suportar uma prótese, que ele chamava de “monstro”. “Com seu palato artificial, escreveu Zweig, ele tinha visivelmente dificuldade para falar [...]. Mas não abandonava seus interlocutores. Sua alma de aço tinha a ambição particular de provar a seus amigos que sua vontade era mais forte que os tormentos mesquinhos que o seu corpo lhe infligia [...]. Era um combate terrível, e cada vez mais sublime à medida que se estendia. Cada vez que eu o via, a morte jogava mais distintamente sua sombra sobre seu rosto [...]. Um dia, quando de uma de minhas últimas visitas, levei comigo Salvador Dali, a meu ver o pintor mais talentoso da jovem geração, que devotava a Freud uma veneração extraordinária. Enquanto eu falava, ele desenhou um esboço. Nunca tive coragem de mostrá-lo a Freud, pois Dali, em sua clarividência, já representara o trabalho da morte.” A doença não impedia Freud de prosseguir com suas atividades, mas o mantinha afastado das questões do movimento psicanalítico, e foi Jones quem presidiu os destinos da IPA a partir de 1934, data na qual Max Eitingon foi obrigado a deixar a Alemanha.Apaixonado por telepatia, Freud não hesitou em se dedicar, com Ferenczi, entre 1921 e 1933, a experiências ditas “ocultas”, que iam contra a política jonesiana, que visava dar à psicanálise uma base racional, científica e médica. Em 1926, depois de um processo intentado contra Theodor Reik, tomou vigorosamente a defesa dos psicanalistas não-médicos, publicando “A questão da análise leiga”.

No ano seguinte, deflagrou com seu amigo Oskar Pfister uma polêmica ao publicar “O futuro de uma ilusão”, obra na qual comparava a religião a uma neurose. Enfim, em 1930, com “O mal-estar na cultura”, questionava a capacidade das sociedades democráticas modernas de dominar as pulsões destrutivas que levam os homens à sua perda. Dois anos depois, em um intercâmbio com Albert Einstein (1879-1955), enfatizou que o desenvolvimento da cultura era sempre uma maneira de trabalhar contra a guerra. Entre 1929 e 1939, manteve uma crônica de seus encontros (Kürzeste Chronik, Crônica brevíssima), que seria publicada por Michael Molnar em Londres, em 1992. Cada vez mais pessimista quanto ao futuro da humanidade, Freud não tinha nenhuma ilusão sobre a maneira como o nazismo tratava os judeus e a psicanálise: “Como homem verdadeiramente humano, escreveu Zweig, ele estava profundamente abalado, mas o pensador não se surpreendia absolutamente com a espantosa irrupção da bestialidade.” Entretanto, no dia seguinte ao incêndio do Reichstag, decidiu com Eitingon manter a existência do BPI. Embora não aprovasse a política de “salvamento” da psicanálise, preconizada por Jones, cometeu o erro de privilegiar a luta contra os dissidentes (Reich e os adlerianos), ao invés de recusar qualquer compromisso com Matthias Heinrich Göring, o que teria levado à suspensão de todas as atividades psicanalíticas, logo que Hitler chegou ao poder.Mas em março de 1938, no momento da invasão da Áustria pelas tropas alemãs, Richard Sterba agiu em sentido contrário, decidindo recusar a política de Jones e não criar em Viena um instituto “arianizado” como o de Göring, em Berlim. Tomou-se então a decisão de dissolver a Wiener Psychoanalytische Vereinigung (WPV) e transportá-la “para onde Freud fosse morar”. Graças à intervenção do diplomata americano William Bullitt (1891-1967) e a um resgate pago por Marie Bonaparte, Freud pôde deixar Viena com sua família. No momento de partir, foi obrigado a assinar uma declaração na qual afirmava que nem ele nem seus próximos haviam sido importunados pelos funcionários do Partido Nacional-Socialista. Em Londres, instalou-se em uma bela casa em Maresfield Gardes 20, futuro Freud Museum. Ali, redigiu sua última obra, “Moisés e o monoteísmo”. Nunca saberia do destino dado pelos nazistas às suas quatro irmãs, exterminadas em campos de concentração.

No começo do mês de setembro de 1939, escutava o rádio todos os dias. Aos seus familiares, que lhe perguntavam se aquela seria a última guerra, respondia: “Será minha última guerra.” Iniciou então a leitura de “Peau de chagrin” de Honoré de Balzac (1799-1850): “É exatamente disso que preciso, disse, este livro fala de definhamento e de morte por inanição.” Em 21 de setembro, pegou a mão de Max Schur e lembrou o primeiro encontro dos dois: “Você prometeu não me abandonar quando chegasse a hora. Agora é só uma tortura sem sentido.” Depois, acrescentou: “Fale com Anna; se ela achar que está bem, vamos acabar com isso.” Consultada, Anna quis adiar o instante fatal, mas Schur insistiu e ela aceitou a decisão. Por três vezes, ela deu a Freud uma injeção de três centigramas de morfina. Em 23 de setembro, às três horas da manhã, depois de dois dias de coma, Freud morreu tranqüilamente: “Foi a sublime conclusão de uma vida sublime, escreveu Zweig, uma morte memorável em meio à hecatombe, daquela época mortífera. E quando nós, seus amigos, enterramos seu caixão, sabíamos que confiávamos à terra inglesa o que a nossa pátria tinha de melhor.” As cinzas de Freud repousam no crematório de Golders Green.Centenas de obras foram escritas no mundo sobre Freud e algumas dezenas de biografias lhe foram consagradas, de Fritz Wittels a Peter Gay, passando por Lou Andréas Salomé, Thomas Mann, Siegfried Bernfld, Ernest Jones, Ola Andersson, Henri F. Ellenberger, Max Schur, Kurt Eissler, Didier Anzieu, Carl Schorske.

Sua obra, traduzida em cerca de 30 línguas, é composta de 24 livros propriamente ditos (dos quais dois em colaboração, um com Josef Breuer, outro com William Bullitt) e de 123 artigos. Freud também escreveu prefácios, necrológios, intervenções diversas em congressos e contribuições para enciclopédias.Acredita-se geralmente que a psicanálise renovou o interesse tradicionalmente atribuído aos eventos da existência para compreender ou interpretar o comportamento e as obras dos homens excepcionais. Isso não é verdade, e Freud, sobre isso, é categórico: “Quem quiser se tornar biógrafo deve se comprometer com a mentira, a dissimulação, a hipocrisia e até mesmo com a dissimulação de sua incompreensão, pois a verdade biográfica não é acessível e, se o fosse, não serviria de nada” (carta a A. Zweig, de 31 de maio de 1936).Kurt Eissler avaliou em 15 mil o número de cartas escritas por Freud e em cerca de 10 mil as que estão depositadas na Biblioteca do Congresso, em Washington ou seja uma perda de aproximadamente cinco mil peças. O historiador alemão Gerhard Fichtner propôs outras cifras. Segundo ele, Freud teria escrito cerca de 20 mil cartas. Dez mil teriam sido destruídas ou perdidas, cinco mil estão conservadas e cinco mil ainda poderiam ser encontradas no século XXI, ou seja dez mil no total.

Observe-se que Freud destruiu ou perdeu uma parte das cartas que seus correspondentes lhe enviaram, particularmente as de Wilhelm Fliess.Três mil e duzentas cartas de Freud foram publicadas, entre as quais as dirigidas a Eduard Silberstein, Wilhelm Fliess, Lou Andréas-Salomé, Ernest Jones, Carl Gustav Jung, Sandor Ferenczi, Romain Rolland, Arnold Zweig, Stefan Zweig, Edoardo Weiss, Oska Pfister (expurgadas), Karl Abraham (expurgadas).Duas edições completas da obra de Freud em alemão foram realizadas: uma durante sua vida, os “Gesammelte Schriften”, a outra depois em sua morte, as “Gesammelte Werke (GW)”, publicadas primeiro em Londres, depois em Frankfurt. As GW se tornaram, universalmente, a edição de referência. Foram completadas por dois outros volumes, um “Índice” e um volume de suplementos (Nachtragsband), realizado por Ângela Richards e Ilse Grubrich-Simitis. A estes se acrescentam uma edição dita de estudos, a Studienausgabe, elaborada por Alexander Mitscherlich e composta de um seleção de textos. Apesar de todos os esforços de Mitscerlich e de Ilse Grubrich-Simitis, nenhuma edição dita crítica das GW (notas, comentários, apresentações, etc.) foi publicada na Alemanha.A edição inglesa, realizada por James Strachey sob o título “Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (SE)”, é a única edição crítica da obra de Freud.

É por isso que, mais ainda do que as “Gesammelte Werke”, é uma obra de referência no mundo inteiro. Em razão da oposição dos herdeiros nenhum dos textos de Freud anterior ao ano de 1886 foi integrado às diversas obras completas. Ora, durante esse período, dito pré-psicanalítico, que se estendeu de 1877 a 1886, Freud publicou 21 artigos sobre temas diversos: neurologia, medicina, histologia, cocaína, etc. Esses artigos foram recenseados em 1973 por Roger Dufresne.Em 1967, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis isolaram cerca de 90 conceitos estritamente freudianos no interior de um vocabulário psicanalítico composto de 430 termos. Esses conceitos foram objeto de múltiplas revisões, efetuadas pelos grandes teóricos e clínicos do freudismo: Sandor Ferenczi, Melanie Klein, Jacques Lacan, Donald Woods Winnicott, Heinz Kohut, etc. Observe-se que Freud publicou cinco grandes casos clínicos, que foram comentados ou revistos por seus sucessores: Ida Bauer (Dora), Herbert Graf (O Pequeno Hans), Ernst Lanzer (O Homem dos Ratos), Daniel Paul Schreber, Serguei Constantinovitch Pankejeff (O Homem dos Lobos). Segundo o quadro das filiações estabelecido por Ernst Falzeder em 1994, Freud formou na análise didática mais de 60 práticos, na maioria alemães, autríacos, ingleses, húngaros, neerlandeses, americanos, suíços, aos quais se acrescentam os pacientes cuja identidade se ignora.

Foi talvez Stefan Zweig, em 1942, quem redigiu um dos relatos mais realistas de Freud: “Não se podia imaginar um indivíduo de espírito mais intrépido. Freud ousava a cada instante expressar o que pensava, mesmo quando sabia que inquietava e perturbava com suas declarações claras e inexoráveis; nunca procurava tornar sua posição menos difícil através da menor concessão, mesmo de pura forma. Estou convencido de que Freud poderia ter exposto, sem encontrar resistência por parte da universidade, quatro quintos de suas teorias, se estivesse disposto a vesti-las prudentemente, a dizer “erótico” em vez de “sexualidade”, “Eros” em vez de “libido” e a não ir sempre até o fundo das coisas, mas limitar-se a sugeri-las. Mas, desde que se tratasse de seu ensino e da verdade, ficava intransigente; quanto mais firme era a resistência, tanto mais ele se afirmava em sua resolução. Quando procuro um símbolo da coragem moral- o único heroísmo no mundo que não exige vítimas – vejo sempre diante de mim o belo rosto de Freud, com sua clareza viril, com seus olhos sombrios de olhar reto e viril”.

Sócrates

Sócrates

Sócrates - (470-399 a.C). A biografia de Sócrates é contada por Xenofonte e Platão principalmente nos livros Apologia de Sócrates e Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates do primeiro e Apologia de Sócrates e Fédon do segundo. Era Ateniense, filho de uma parteira chamada Fenarete, e de um escultor, chamado Sofronisco. Recebeu uma educação tradicional e desde a juventude interessou-se pela filosofia. Conhecia o pensamento anterior e contemporâneo dos filósofos gregos e interessava-se pela conversa em locais públicos. Fazia muitas andanças conversando nas praças e mercados. Participou do movimento de renovação da cultura e foi um educador popular. Nunca trabalhou e só pensava no presente. Muitas vezes, só comia quando seus discípulos o convidavam para suas mesas. Foi casado com Xantipa, mas não parava em casa. Teve três filhos. Participou, como soldado, de incursões militares como as de Potidéia, Delos e Anfipólis. Recebeu reconhecimento por alguns feitos de bravura, como quando salvou Xenofonte (ou segundo outras fontes Alcíbiades), tombado, com seu próprio corpo. De ínicio, interessava-se pelos ensinamentos dos filosófos da natureza, como Anaxágoras, mas depois revoltou-se contra eles, pois eles haviam sido filósofos físicos, que procuravam respostas nas causas exteriores e gerais da natureza. Achava que existe algo mais digno para se estudar, existe a psyche, ou a mente do homem. Por isso, sondou a alma humana , em questões como a da facilidade de justiça dos atenienses, porque esses lidam com tanta facilidade com a vida e a morte, honra, patriotismo, moralidade. Em que se baseiam? E o que entendem por eles próprios? Assim descobriu que o homem é sua alma, e não o corpo, pois o que manipula o corpo é a alma. Foi contra os sofistas, por achar que a verdade é apenas uma, e condenavam seu relativismo.

Sócrates usava nas suas conversas com os cidadãos um método chamado maiêutica, que consiste em forçar o interlucutor a desenvolver seu pensamento sobre uma questão que ele pensa conhecer, e po-lo em contradição. Tem uma frase famosa "Só sei que nada sei". Já a frase "Conhece-te a ti mesmo", apesar de muitas vezes a ele atribuída, era um dos pilares da sabedoria grega, sendo por isso inscrita no pórtico do Oráculo de Delfos. O verdadeiro filósofo sabe que sabe muito pouco, e ele se autodenominava assim. A palavra filosofia significa amizade ao saber. As etapas do saber seriam: ignorar sua ignorância, conhecer sua ignorância, ignorar seu saber e conhecer seu saber. As opiniões não são verdades pois não resistem ao diálogo crítico. Conversar com Sócrates podia ser expor-se ao ridículo, e ser apanhado numa complexa linha de pensamento exposta através de palavras, ficar totalmente envolvido. No diálogo Teeteto de Platão, compara sua atividade à de uma parteira (como sua mãe), que embora não desse a luz à um bebê, ajudava no parto.

Ele diz que ajudava as pessoas a parirem suas próprias idéias. Diz que Atenas era uma égua preguiçosa, e ele um pequeno mosquito que lhe mordia os flancos para provar que estava viva. Achava que a principal tarefa da existência humana era aperfeiçoar seu espírito. Acreditava ouvir uma voz interior, de natureza divina (um daimon), que lhe contava a verdade, e para ele só existia um deus. Era capaz de ficar horas imerso em si mesmo, em profundos momentos de reflexão. Não foi por acaso que a Pitía, do oráculo de Delfos, o proclamou como o homem mais sábio de Atenas quando o amigo de juventude de Sócrates, Querefonte, foi interrogá-la. Sócrates foi convidado para o Senado dos quinhentos, e manifestou sua convicção de liberdade combatendo as medidas que considerava injustas. A democracia estava se implantando em Atenas, e Sócrates respondia qual era o melhor Estado, como poderia se salvá-lo. Os homens mais sábios deviam governá-lo, pois eles podem controlar melhor seus impulsos violentos e anti-sociais. Assim, nos afastaríamos do comportamento de um animal.
O Estado não confiava na habilidade e reverenciava mais o número do que o conhecimento. Portanto, Sócrates era aristocrático, pois há inteligência que baste para se resolver os assuntos do Estado.

A reação do partido democrático de Atenas não poderia ser outra. Em um juri de cinquenta pessoas, foi acusado, condenado por negas os deuses do Estado e por "perverter a juventude de Atenas". Muitos jovens seguiam Sócrates, e tornavam-se seus discípulos. Anito, um líder democrático tinha um filho discípulo de Sócrates, que ria dos deuses do pai, voltava-se contra eles. Sócrates foi considerado, aos setenta anos, líder espiritual do partido revoltoso. Foi condenado a morte, e devia tomar cicuta (um veneno). Podia ter fugido da prisão, ou pedido clemência, ou ter saído de Atenas, mas não quis. Assim, se tornou o primeiro mártir da filosofia. Não deixou nenhuma obra escrita. Sua morte nos é contada por Platão, que foi um de seus discípulos, e fiz aqui um resumo:

"(...) Ele se levantou e se dirigiu ao banheiro com Críton, que nos pediu que esperássemos, e esperamos, conversando e pensando
(...) na grandeza de nossa dor. Ele era como um pai do qual estávamos sendo privados, e estamos prestes a passar o resto da vida orfãos.
(...) A hora do pôr do sol estava próxima, pois ele tinha passado um longo tempo no banheiro .(...) Pouco depois, o carcereiro entrou e se postou perto dele, dizendo:
-A ti, Sócrates, que reconheço ser o mais nobre, o mais delicado e o melhor de todos os que já vieram para cá, não irei atribuir sentimentos de raiva de outros homens
(...) de fato, estou certo de que não ficarás zangado comigo, porque como sabes, são os outros , e não eu o culpado disso. E assim, eu te saúdo, e peço que suportes sem amargura aquilo que precisa ser feito, sabes qual é a minha missão - e caindo em prantos, voltou-se e retirou-se.
Sócrates olhou para ele e disse: - Retribuo tua saudação, e farei como pedes.- E então, voltando-se para nós disse:- Como é fascinante esse homem; desde que fui preso, ele tem vindo sempre me ver,e agora vede a generosidade com que lamenta a minha sorte. Mas devemos fazer o que ele diz; Críton, que tragam a taça, se o veneno estiver preparado.
(...) Críton, ao ouvir isso fez um sinal para o criado, o criado foi até lá dentro, onde se demorou algum tempo; depois voltou com o carceireiro trazendo a taça de veneno. Sócrates disse:
-Tu, meu bom amigo, que tem expêriencias nesses assuntos, irá me dizer como devo fazer.
O homem repondeu:
- Basta caminhar de um lado para outro, até que tuas pernas fiquem pesadas., depois deita-te e o veneno agirá.-Ao mesmo tempo estendeu a taça a Sócrates, (..) que segurou-a
(...) E então levando a taça aos lábios, bebeu rápida e decididamente o veneno.
Até aquele instante a maioria de nós conseguira segurar a dor; mas agora, vendo-o beber e vendo, também que ele tomara toda a bebida, não pudemos mais nos conter; apesar de meus esforços, lágrimas corriam aos borbotões.
(...) Apolodoro, que estivera soluçando o tempo todo, irorrompeu num choro alto que transformou-nos a todos em covardes.
(...) E então, o próprio Sócrates apalpou as pernas e disse:
-Quando chegar ao coração, será o fim.-
(...) e disse aquelas que seriam as suas últimas palavras: - Críton, eu devo um galo a Esculápio, vais lembrar de pagar a dívida?
-A dívida será paga - disse Críton.
(...) Foi esse o fim de nosso amigo, a quem posso chamar sinceramente de o mais sábio, mais justo e melhor de todos que conheci. "

Isaac Newton

Isaac Newton (1642 - 1727)

O homem de cabelos brancos fechou o caderno, onde, com com escrita regular e miúda, se alinhavam seus cálculos, e recostou-se na cadeira. Naqueles cálculos, naquele caderno fechado que lhe custara tantos esforços e deduções, mais um mistério fora revelado aos homens. E talvez tenha sentido grande orgulho ao pensar nisso.

Esse ancião grisalho, Isaac Newton, era reverenciado na Inglaterra do século XVIII como o maior dos cientistas. Para seus contemporâneos, representava o gênio que codificara as leis do movimento da matéria e explicara como e por que se movem os astros ou as pedras. Uma lenda viva, recoberto de honras e glória, traduzido e reverenciado em toda a Europa, apontado como exemplo da grandeza "moderna" contraposta à grandeza "antiga" que Aristóteles representava. Ainda hoje, seus Princípios constituem um monumento da história do pensamento, só comparável às obras de Galileu e Einstein.

Mas o trabalho que Newton, velho e famoso, acabara de concluir - um dos tantos aos quais dedicou boa parte de sua vida e ao qual atribuía tanta importância - nada tinha a ver com ciência. Era um Tratado sobre a Topograjta do Inferno. Lá estavam deduzidos tamanho, volume e comprimento dos círculos infernais, sua profundidade e outras medidas. Essa prodigiosa mente científica envolvia-se também num misticismo sombrio e extravagante, que atribuía ao inferno uma realidade física igual à deste mundo.

Newton, entretanto, era acima de tudo um tímido e poucos souberam dessa obra, que só nos anos vinte deste século começou a ser divulgada.


Isaac Newton nasceu em Woolsthorpe, no Lincolnshire, Inglaterra, no Natal do ano em que morria Galileu: 1642. Seu pai, um pequeno proprietário rural, havia morrido um pouco antes; três anos mais tarde, a mãe casou-se outra vez, e, mudando de cidade, deixou o pequeno Isaac aos cuidados da avó. Até os doze anos de idade, o menino freqüentou a escola de Grantham, aldeia próxima a Woolsthorpe.

Em 1660, foi admitido na Universidade de Cambridge, conseguindo o grau de bacharel em 1665; nesse ano, uma epidemia de peste negra abateu-se sobre toda a Inglaterra, e a Universidade viu-se obrigada a fechar suas portas. Newton voltou então para casa, onde se dedicou exclusivamente ao estudo, fazendo-o, segundo suas próprias palavras, "com urna intensidade que nunca mais ocorreu". A essa época remontam suas primeiras intuições sobre os assuntos que o tornariam célebre: a teoria corpuscular da luz, a teoria da gravitação universal e as três leis da Mecânica.

Newton retornou a Cambridge em 1667, doutorando-se em 1668. No ano seguinte, um de seus professores, o matemático Isaac Barrow, renunciou às suas funções acadêmicas, para dedicar-se exclusivamente ao estudo da teologia; nomeou Newton seu sucessor, que, assim, com apenas 26 anos de idade, já era catedrático, cargo que ocuparia durante um quarto de século.
Em 1666, enquanto a peste assolava o país, Newton comprou, na feira de Woolsthorpe, um prisma de vidro. Um mero peso de papel, que iria ter grande importância na história da Física. Observando, em seu quarto, como um raio de sol vindo da janela se decompunha ao atravessar o prisma, Newton teve sua atenção atraída pelas cores do espectro. Colocando um papel no caminho da luz que emergia do prisma apareciam as sete cores do espectro, em raias sucessivas: vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil e violeta. A sucessão de faixas coloridas recebeu do próprio Newton o nome de espectro, em alusão ao fato de que as cores que se produzem estão presentes, mas escondidas, na luz branca.


Newton foi além, repetindo a experiência com todas as raias correspondentes às sete cores. Mas a decomposição não se repetia: as cores permaneciam simples. Inversamente, ele concluiu que a luz branca é, na realidade, composta de todas as cores do espectro. E provou isso reunindo as raias coloridas de duas maneiras diferentes: primeiro, mediante uma lente, obtendo, em seu foco, a luz branca; e, depois, através de um dispositivo mais simples, que passou a ser conhecido como disco de Newton. Trata-se de um disco dividido em sete setores, cada um dos quais pintado com uma das cores do espectro. Fazendo-o girar rapidamente, as cores se superpõem sobre a retina do olho do observador, e este recebe a sensação do branco.

Nos anos que se seguiram, já de novo em Cambridge, Newton estudou exaustivamente a luz e seu comportamento nas mais variadas situações. Desenvolveu, assim, o que passaria a se chamar teoria corpuscular da luz; a luz se explicaria como a emissão, por parte do corpo luminoso, de um número incontável de pequenas partículas, que chegariam ao olho do observador e produziriam a sensação de luminosidade. Como subproduto dessas idéias, Newton inventaria o telescópio refletor: ao invés de usar como objetiva umas lente - que decompondo a luz causa aberrações cromáticas emprega um espelho côncavo, que apenas reflete a luz.

Até 1704 - ano em que apareceu sua Optica - Newton não publicou nada sobre a luz; mas isso na impediu que suas idéias fossem sendo divulgadas entre os colegas e alunos de Cambridge.
Havia, na época, outra hipótese sobre a natureza da luz: a teoria ondulatória do holandês Christiaan Huygens. Contemporâneo de Newton, Huygens supunha a. luz formada de ondas, que são emitidas pelo corpo luminoso. Pensava que sua propagação se dá da mesma forma que para as ondas sonoras, apenas muito mais rapidamente que estás últimas.

A posteridade viria demonstrar que, apesar de nenhuma das duas teorias ser integralmente acertada, Huygens andava mais perto da verdade que Newton. Contudo, quando, em 1672, Newton foi eleito membro da Royal Society, seu prestígio já o havia antecedido, e ele quase não encontrou oposição à sua teoria da luz. Mas os poucos opositores - sobretudo Robert Hooke, um dos maiores experimentalistas ingleses obrigaram Newton a enfrentar uma batalha em duas frentes: contra eles e contra a própria timidez.

Seu desgosto pela controvérsia revelou-se tão profundo que, em 1675, escreveu a Leibnitz: "Fui tão irnportunado com discussões a respeito de minha teoria sobre a luz, que condenei minha imprudência em me desfazer de minha abençoada tranqüilidade para correr atrás de uma sombra". Essa faceta de sua personalidade iria fazê-lo hesitar, anos mais tarde, em publicar sua obra máxima: os Princípios.

Por mais de um milênio - desde que, juntamente com o Império Romano, a ciência antiga fora destruída - o pensamento europeu demonstrou-se muito pouco científico. A rigor, é difícil afirmar que a Idade Média tenha, de fato, conhecido o pensamento científico. O europeu culto, geralmente um eclesiástico, não acreditava na experimentação, mas na tradição. Para ele, 'tudo quanto havia de importante a respeito de ciência já havia sido postulado por Aristóteles e mais alguns cientistas gregos, romanos ou alexandrinos, como Galeno, Ptolomeu e Plínio. Sua função não era colocar em dúvida o que tinham afirmado, mas transmiti-lo às novas gerações.
Em poucos séculos - do XI ao XV - o desenvolvimento do comércio e, posteriormente, do artesanato, da agricultura e das navegações, fez desabar a vida provinciana da Idade Média, prenunciando o surgir da Idade Moderna, na qual a ciência foi adquirindo importância cada vez maior.

Os dois grandes nomes que surgem como reformadores da ciência medieval são Johannes Kepler e Galileu Galilei. Kepler, embora um homem profundamente medieval - tanto astrólogo quanto astrônomo - demonstrou, entretanto, que o sistema astronômico dos gregos e dos seus seguidores estava completamente errado. Galileu fez o mesmo com a física de Aristóteles.
A mecânica de Aristóteles, assim como quase toda sua obra científica, baseava-se principalmente na intuição e no "bom senso". Dessa forma, suas análises não iam além dos aspectos mais superficiais dos fatos. A experiência cotidiana sugeria-lhe, por exemplo, que, para conservar um corpo em movimento, é necessário mantê-lo sob a ação de uma influência, empurrá-lo ou puxá-lo. E ele o diz explicitamente em sua Mecânica: "O corpo em movimento chega à imobilidade quando a força que o impele não mais pode agir de modo a deslocá-lo". No entanto, é fato indiscutível que uma pedra pode ser arremessada à distância, sem que seja necessário manter a ação de uma força sobre ela. Aristóteles contornava essa dificuldade dizendo que a razão pela qual a pedra se movimenta repousa no fato de que ela é empurrada pelo ar que ela afasta, à medida que avança. Por menos plausível que fosse essa explicação, ela permaneceu incontestada até o aparecimento de Galileu.

O sábio florentino, percebendo as incongruências das teorias aristotélicas, atacou o problema de maneira oposta. Seu raciocínio foi bastante simples: suponha-se que alguém empurre um carrinho de mão por uma estrada plana. Se ele repentinamente parar de empurrar, o carrinho percorrerá ainda uma certa distância antes de cessar seu movimento. E essa distância poderá ser aumentada, se a estrada for tornada muito lisa e as rodas do carrinho estiverem bem lubrificadas. Em outros termos, à medida que se diminuir o atrito entre o eixo do carrinho e suas rodas, e entre estas e a estrada, a redução de sua velocidade será cada vez menor. Galileu supôs, então, que, se o atrito entre o carrinho e a estrada fosse eliminado por completo, o carrinho deveria - uma vez dado o impulso inicial - continuar indefinidamente em seu movimento.
Quarenta anos após a morte de Galileu, Isaac Newton formulou mais precisamente esse conceito, que passou a ser conhecido como o Primeiro Principio da Mecânica: "Qualquer corpo permanece em repouso ou em movimento retilíneo uniforme, a não ser que sofra uma ação externa".

Galileu havia tentado ir mais além, estudando a maneira como o movimento de um corpo varia quando este está sob a ação de uma força - por exemplo, a queda de um corpo sobre a superfície da Terra. Contudo, ele não pôde separar claramente nas suas experiências o dado principal dos acessórios. Foi Newton quem despiu o problema de seus aspectos não essenciais, e viu na massa do corpo esse dado.

Um mesmo corpo, submetido a forças de valores diferentes, move-se com velocidades diversas. Uma bola parada, ao receber um chute, adquire maior ou menor velocidade, num certo lapso de tempo, conforme o chute seja forte ou fraco. Como a variação da velocidade com o tempo mede a aceleração, a força maior comunica à bola uma aceleração maior.

Por outro lado, dois corpos de massas diferentes, quando sob a ação de forças de igual valor, também se movem diversamente: o de maior massa fica submetido a uma aceleração menor. Ou seja, a aceleração provocara por uma força que atua sobre um corpo tem a direção e o sentido desta força, e é diretamente proporcional ao valor dessa força e inversamente proporcional à massa do corpo.

Esse é o enunciado do Segundo Princípio da Mecânica, que permite, em última análise, descrever todo e qualquer movimento, desde que se conheçam as massas dos corpos envolvidos e as forças a que eles estão sujeitos. A partir dele, podem-se derivar todas as relações entre a velocidade de um corpo, sua energia, o espaço que ele percorre em determinado intervalo de tempo, e assim por diante.

Entretanto, além do problema da massa, Newton foi obrigado a resolver outra questão: como se manifesta o estado de movimento de um corpo, num tempo infinitamente curto, sob a influência de uma força externa? Somente assim poderia estabelecer fórmulas gerais aplicáveis a qualquer movimento. Esta preocupação levou-o a inventar o cálculo diferencial, a partir do qual obteve também o cálculo integral.

O contraste entre a simplicidade do enunciado e a profundidade de sua significação é ainda mais evidente no seu Terceiro Principio da Mecânica: "A toda ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário " Este é o postulado mais simples e mais geral de toda a Física. Ele explica, por exemplo, por que uma pessoa dentro de um barco, no meio de um rio, quando quer se aproximar da terra firme, "puxa a margem" e o resultado visível é que a margem "puxa o barco". Em outras palavras, quando o indivíduo laça com uma corda uma estaca da margem e começa a puxar a corda, está, na verdade, exercendo uma força (ação) sobre a margem; esta, por sua vez, aplica uma força igual em sentido contrário (reação) sobre o barco, o que faz com que este se movimente.

Pode parecer extraordinário que algo tão evidente tivesse que esperar o surgimento de Newton para ser estabelecido; mas, na verdade, ele só pôde fazer suas afirmações depois que Galileu tornou claro o papel que as forças desempenham no movimento. Galileu foi, assim, o precursor de Newton, e este seu herdeiro e continuador.

O papel de Newton como sintetizador repetiu-se em outro dos episódios importantes de sua obra: o descobrimento da lei da gravitação universal. Desta vez, o pioneiro foi Kepler.
Enquanto Galileu lutou contra Aristóteles, Kepler insurgiu-se contra Ptolomeu, um dos maiores astrônomos alexandrinos e, também - embora involuntariamente -, o principal obstáculo ao desenvolvimento da astronomia na Idade Média.

Pltolomeu acreditava no sistema das esferas concêntricas: a Terra era o centro do Universo; à sua volta, giravam a Lua, o Sol, os planetas e as estrelas. E, o que é mais importante do ponto de vista cosmológico, tinha a certeza de que os movimentos dessas esferas deveriam realizar-se em círculos perfeitos, com velocidade uniforme. Sua certeza originara-se em Platão e tinha razões de ordem religiosa: Deus só pode fazer coisas perfeitas, e apenas o movimento circular é perfeito.
Essa visão do Universo prevaleceu por tempo espantosamente longo, considerando-se as evidências em contrário. O primeiro passo efetivo contra esse estado de coisas foi dado por Nicolau Copérnico, no princípio do século XVI: ele questionou o dogma de que a Terra é o centro do Universo, transferindo para o Sol este papel. Mas não viveu - nem lutou - para ver sua idéia prevalecer. Quem fez isso foi Kepler.

Colocar o Sol no centro do Universo, com a Terra e os demais planetas girando em torno dele, não foi a tarefa mais árdua de Kepler; o pior foi descrever como se dá o movimento dos planetas, já que as trajetórias circulares evidentemente não eram obedecidas. E Kepler lutou a vida inteira contra seus contemporâneos - e contra seus próprios preconceitos astrológico-mágicos para concluir que os planetas descrevem elipses em torno do Sol, obedecendo a três leis matemáticas bem determinadas.

Trinta anos após a morte de Kepler e vinte depois da de Galileu, Newton, com apenas vinte anos de idade, atacou o quebra-cabeças legado por seus dois precursores. As peças-chave eram: as leis dos movimentos dos corpos celestes, de Kepler. e as leis dos movimentos dos corpos na Terra, de Galileu. Mas os dois fragmentos não se ajustavam, pois, de acordo com as leis descobertas por Kepler, os planetas se moviam segundo elipses, e, conforme Galileu, segundo círculos. Por outro lado, as leis da queda dos corpos de Galileu não possuíam relação aparente com o movimento dos planetas ou dos cometas.

Newton atacou o problema, estabelecendo uma analogia entre o movimento da Lua ao redor da Terra e o movimento de um projétil lançado horizontalmente na superfície do planeta. Qualquer projétil assim lançado está sob a ação de dois movimentos: um movimento uniforme para a frente em linha reta, e um movimento acelerado devido a força de gravidade que o atrai para a Terra. Os dois movimentos interagindo produzem uma curva parabólica, conforme demonstrou Galileu, e o projétil termina por cair ao chão. Cairá mais perto do lugar onde foi disparado se a altura de lançamento foi pequena e a velocidade inicial do corpo foi baixa; cairá mais longe, se a situação se inverter.

Newton perguntou-se, então, o que sucederia se a altura do lançamento fosse muito grande, comparável, por exemplo, com a distância da Terra à Lua. E sua resposta foi a de que o corpo deveria cair em direção à Terra, sem, contudo, atingir sua superfície.
O porquê reside no seguinte: se o corpo for lançado além de uma certa altura - e esse é o caso, por exemplo, dos satélites artificiais -, a parábola descrita pelo corpo não o trará de volta à Terra, mas o colocará em órbita. Assim, o satélite artificial está sempre caindo sobre o planeta, sem nunca atingi-lo. O mesmo acontece com a Lua, que um dia tangenciou a Terra e nunca mais deixou de "cair" sobre 'ela.

Com esse raciocínio, Newton ligou dois fenômenos que até então pareciam não ter relação entre si- o movimento dos corpos celestes e a queda de um corpo na superfície da Terra. Foi assim que surgiu a lei da gravitação universal.

Tudo isso foi-lhe aparecendo gradualmente, até que, em 1679, pôde responder a Halley, seu amigo e discípulo, que lhe perguntara se conhecia um princípio físico capaz de explicar as leis de Kepler sobre os movimentos dos planetas. E sua resposta foi a seguinte: a força de atração entre dois corpos é proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa. "Percebi", escreveu Halley a Newton, "que você tinha feito uma demonstração perfeita."

Halley induziu, então, o amigo não sem alguma dificuldade, pois Newton tinha bem presente o episódio da polêmica com Hooke - a reunir em uma só obra seus trabalhos sobre a gravitação e as leis da Mecânica, comprometendo-se a custeear, ele mesmo, as despesas de publicação.

Embora se tratasse de resumir e ordenar trabalhos em grande parte já escritos, sua realização consumiu dois anos de aplicação contínua. O compêndio, chamado Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, os Princípios, compõe-se de três livros. O primeiro trata dos princípios da Mecânica; é nele que aparecem as três leis do movimento de Newton. O segundo cuida da mecânica dos fluidos e dos corpos neles imersos. Finalmente, o terceiro situa filosoficamente a obra do autor e traz alguns resultados do que foi estabelecido nos dois anteriores.

Nesse terceiro livro, Newton analisa os movimentos dos satélites em tomo de um planeta e dos planetas ao redor do Sol, baseando-se na gravitação universal. Mostra que é possível deduzir, da forma de tais movimentos, relações entre as massas dos planetas e a massa da Terra. Fixa a densidade da Terra entre 5 e 6 (o valor admitido atualmente é 5,5) e calcula a massa do Sol, bem como a dos planetas dotados de satélites. Avalia em 1/230 o achatamento da Terra nos pólos - hoje sabemos que este valor é de 1/270.

A estrada: de Newton em direção à execução da obra que o imortalizou foi plana e isenta de acidentes de maior importância. Newton não teve que enfrentar sozinho, como Galileu, a oposição de seus contemporâneos, nem conheceu, como o florentino, a iniqüidade das retratações perante os tribunais religiosos. Não precisou, como Kepler, travar lutas consigo próprio, para fazer coincidir suas idéias sobre astrologia e seus preconceitos místicos com os resultados das observações.

Newton, como se descobriria depois, foi tão obcecado pelo misticismo quanto Kepler. Só que ele manteve ciência e religião completamente separados em sua mente. Uma não influía sobre a outra.

Newton sempre teve o apoio do mundo científico de sua época, usufruindo de todas as honrarias que podem ser concedidas a um homem de ciência: em 1668, foi nomeado representante da Universidade de Cambridge, no Parlamento; em 1696, assumiu o cargo de inspetor da Casa Real da Moeda, tornando-se seu diretor em 1699; nesse mesmo ano foi eleito membro da Academia Francesa de Ciências; em 1701, deixou sua cátedra em Cambridge, e, a partir de 1703, até sua morte, foi presidente da Royal Society.

Mas, ao assumir mais cargos e receber mais gratificações, sua atividade científica passou a diminuir e sua preocupação com religião e ocultismo tendeu a aumentar. Depois da publicação dos Princípios, suas contribuições se tornaram cada vez mais esparsas e, na maior parte das vezes, insignificantes quando comparadas com a obra anterior.

No início de 1727, Newton, cuja saúde declinava há anos, ficou gravemente enfermo. Morreu no dia 20 de março desse ano, tendo sido sepultado na Abadia de Westminster com o seguinte epitáfio: "É uma honra para o gênero humano que um tal homem tenha existido."

Leonardo da Vinci

Leonardo da Vinci (1452 - 1519)


"Os meus segredos." Era assim que, em 1482, um jovem artista se referia às suas aptidões, em carta enviada ao duque de Milão, Ludovico Sforza. Num tom frio e calculado, ele oferecia seus serviços para tempos de guerra e de paz. Dizia-se capaz de construir pontes portáteis para perseguir o inimigo, cavar túneis por baixo de rios e destruir fortalezas. Afirmava ter inventado um novo tipo de bombarda, uma carreta blindada e um navio à prova de bombas. Também tinha planos para a construção de estranha arma submarina de defesa e ataque. Além disso, proclamava que, em época de paz, poderia realizar obras de pintura e escultura ao nível de qualquer artista importante da época.


Ludovico mandou chamar o audacioso jovem que lhe escrevera e, assombrado, pôde confirmar a universalidade de seus conhecimentos. Leonardo da Vinci não exagerara sua apresentação; aliava a uma personalidade fascinante a capacidade de escultor, pintor, arquiteto, engenheiro, músico, anatomista, matemático, naturalista, inventor, astrônomo e filósofo.


Explorador de todos os ramos do conhecimento, Leonardo não concebia limites para seus sonhos ou fantasias. E disso resultou sua glória e tragédia. Idealizou inúmeros projetos, mas completou apenas alguns. Abandonava os trabalhos ao perceber que a execução não correspondia ao desejado. Sua vida foi repleta de fragmentos de obras, alguns extraordinários. Pouco antes de morrer, escreveria amargurado: "Nunca terminei um só trabalho".


Contudo, deixou cinco mil páginas de manuscritos que abrangem temas tão diversos como as causas das marés, o mecanismo do movimento do ar nos pulmões, os hábitos noturnos das corujas, as leis físicas da visão humana e a natureza da Lua. Apresentou, também, planos de urna máquina voadora, uma série de teoremas geométricos, diversos estudos hidráulicos, projeto para uso do vapor como meio de propulsão, poemas, fábulas e máximas filosóficas. Seu trabalho é completado por obras consagradas pela história da Arte, como a Mona Lisa e a última Ceia. (Pintou ainda: Baco, São João Batista, Leda, Santana, a Virgem e o Menino e A Virgem dos Rochedos.)


Leonardo nasceu a 15 de abril de 1452, na pequena vila de Vinci, perto de Florença. Filho ilegítimo de Piero da Vinci, escrivão do modesto vilarejo ao norte da Itália, manteve-se sempre muito apegado ao pai e à mãe, Caterina, que se casou, posteriormente, com Pieró del Vacca.
O extraordinário e diversificado talento de Leonardo manifestou-se nos primeiros anos de vida: belo e forte, era excelente esportista - ótimo nadador e cavaleiro; engenhoso artesão e mecânico, logo revelou seus dons inventivos; o desenho e a pintura também atraíram seu interesse, demonstrando seus dotes artísticos.


Em 1470, Piero da Vinci levou alguns desenhos do filho a Andrea del Verrocchio, célebre professor, embora um tanto medíocre como pintor. Del Verrocchio percebeu o talento de Leonardo e recebeu o jovem de dezoito anos em sua casa, corno aprendiz. Até 1477, Leonardo permaneceu sob a orientação do professor, aprendendo não só os segredos da pintura e da escultura, mas também técnicas artesanais (como as de ferreiro e de mecânico).
Os passos seguintes da vida de Leonardo não podem ser estabelecidos com muita precisão. Sabe-se, entretanto, que, após deixar o estúdio de Verrocchio, permaneceu vários anos em Florença, como protegido de um Medici, Lourenço, o Magnífico.


Talvez impelido por seu espírito aventureiro, ou por considerar que os conterrâneos não estavam apreciando devidamente seu talento (o projeto que elaborara para a canalização do Arno fora rejeitado por Lourenço), Leonardo resolveu mudar-se para Milão, onde Ludovico Sforza, o Mouro, tinha-se firmado no poder. E escreveu-lhe a carta de apresentação de suas habilidades.


Segundo alguns biógrafos, o principal :motivo da acolhida de Ludovico a Leonardo foi um projeto para erguimento de uma estátua em homenagem a Francesco Sforza, pai do duque. Outros historiadores, porém, afirmam ter sido o duque atraído sobretudo pelas habilidades musicais de Leonardo.


Em Milão, Leonardo pintou a Última Ceia, considerada por muitos sua obra prima. Conta-se a esse respeito que, impaciente com a demora de Leonardo em terminar essa obra, o prior do convento de Santa Maria delle Grazie (onde estava sendo executada) foi queixar-se ao duque Ludovico. Chamado ao palácio para as devidas explicações, Leonardo citou, entre os vários motivos para a delonga, a dificuldade de encontrar um modelo para fazer a figura de Judas. Afirmou então, que, se não houvesse outro recurso, tomaria por modelo o prior impaciente e importuno. O sacerdote calou-se e o artista pôde terminar sossegado o seu trabalho.


Em 1499, quando Milão foi conquistada por Luís XII, Leonardo abandonou a cidade. Depois de breve permanência em Mântua, onde contou com a proteção da duquesa Isabella Gonzaga, dirigiu-se a Veneza, residindo aí até abril de 1500. Informado da derrota definitiva e prisão do duque Ludovico Sforza, desistiu de voltar a Milão e seguiu para Florença. Só voltaria àquela cidade em 1506, a convite de Charles d'Amboise, marechal de Chaumont, e braço-direito do rei da França na Lombardia. Mas, em setembro do ano seguinte, regressou a Florença para resolver um problema de família: a divisão dos bens de seu pai, que falecera sem deixar testamento. Permaneceu na terra natal até 1511, fazendo nesse período amizade com Francesco Melzi, a quem confiaria, ao morrer, todos os seus manuscritos.


Em 1512, Leonardo resolveu transferir-se para Roma, onde havia intenso movimento cultural. Além disso, Leão X - um Mediei recém-eleito papa era seu grande admirador desde os primeiros tempos de Florença, e arranjou-lhe local adequado para seu trabalho e de seus alunos.


Aparentemente favorável, o ambiente romano acabou se revelando adverso a Leonardo. Talvez interessado na compressibilidade dos gases, mandava secar vísceras de animais e, enchendo-as de ar, por meio de um fole de ferreiro, estudava-lhes o comportamento. Mas, além de suas experiências científicas serem mal interpretadas, uma geração mais jovem - que tinha como expoentes Michelangelo e Rafael - conquistava as preferências dos nobres. Não hesitou, portanto, em aceitar o convite de Francisco I (sucessor de Luís XII no trono da França) para morar em Cloux, perto de Amboise, no castelo com que o soberano o presenteara.
Na França, Leonardo viveria seus últimos dias. Morreu a 2 de maio de 1519, após receber os sacramentos da Igreja - e, ao que se conta, nos braços do rei Francisco I.


Em Florença, Milão, Roma ou Amboise - onde quer que estivesse Leonardo tinha sempre um hábito: reunir pequena multidão em praça pública, para expor suas idéias de engenheiro, pintor, escultor, Filósofo, músico ou poeta. Ele sabia prender seu público com anedotas e fábulas espirituosas que inventava, e com as músicas que tirava com grande perfeição de sua lira. "Quem não ama a vida não a merece", dizia ele.


Mais do que com anedotas e músicas, Leonardo deixava o público boquiaberto com seus ambiciosos e mirabolantes projetos de máquinas para fazer o homem voar, de barcos capazes de navegar sob a água, de infernais armas de guerra. O "engenheiro" ia mais além, ao profetizar conquistas só alcançadas vários séculos depois:
"Com pedra e ferro, tornar-se-ão visíveis coisas que não aparecem." "Homens falarão a outros de longínquos países e obterão respostas."


Os projetos de Leonardo ficaram famosos pela audácia: os estudos sobre o vôo das aves e a concepção de que o homem poderia um dia voar imitando a habilidade dos pássaros não foram as únicas. idéias grandiosas que se tornaram realidade quando a técnica alcançou o necessário desenvolvimento.


Em 1502, contratado como engenheiro por César Bórgia, Leonardo viajou por toda a Itália central, projetando e fiscalizando obras, corno a construção de canais e a restauração do palácio de Frederico II. Os estudos sobre drenagem de pântanos, os mapas minuciosamente desenhados, os esquemas sobre o canal do porto de Cesenatico atestara sua vasta atividade nessa época. Na França, Leonardo desenhou a planta de um palácio e projetou um canal para ligar o Loire ao Saône.


Para Leonardo, a pintura era uma ciência, enquanto a escultura não passava de uma "arte mecanicíssima". Por encarar a pintura como ciência, foi levado a estudar a fundo a Cinemática, visando dar às suas figuras uma perfeita idéia de movimento. Defendia que, para conhecer o movimento dos organismos vivos, era necessário primeiro estudar o movimento em si, independentemente da vida ou da vontade. Procurou, então, interpretar o movimento dos corpos inanimados, observando mesmo, com auxílio de instrumentos, o deslocamento dos corpos celestes.


A partir dessas observações, Leonardo intuiu as idéias de impulso e quantidade de movimento: "Impulso é impressão de movimento transferido do motor ao móvel".
Analisando-se acuradamente os textos de Leonardo chega-se à conclusão de que ele concebeu também o princípio da inércia, embora sem o rigor que caracterizaria o enunciado de Galileu - o primeiro a dar uma explicação racional e fundamentada para os movimentos e suas causas.
Leonardo limitou-se a teorizar vagamente sobre movimento e força, usando termos como "impressão de movimento" e "potência":"Nenhuma coisa se move por si mesma, mas seu movimento é produzido por outros." "Todo movimento espera ser mantido, ou seja, todo corpo em movimento move-se enquanto conserva a impressão da potência de seu motor."


Para a física moderna, o enunciado de Leonardo que mais se aproxima do princípio da inércia ("Todo corpo isolado permanece em seu estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme") prende-se a suas conjeturas sobre o centro da Terra - que ele definia como ponto para o qual todos os corpos são atraídos. Reconheceu que, uma vez aberto um túnel de uma extremidade a outra de um diâmetro da Terra, um corpo jogado num dos extremos não pararia no centro terrestre, mas continuaria seu movimento, devido ao que ele chamava de "ímpeto". E isso pode ser interpretado como decorrência da lei da conservação do momento (ou quantidade de movimento), que eqüivale à lei da inércia.


Mas nem todas as idéias de Leonardo sobre a gravidade foram corretas: muitas delas refletiam ainda fortes influências do dogmatismo aristotélico, que sé seria definitivamente abandonado, em favor do racionalismo de Galileu e Newton, no século XVII.


Os estudos de Leonardo sobre mecânica dos fluidos apresentam um destaque especial em sua obra. Tinha várias idéias sobre a forma de remover a água de um lugar para outro e comprovou seus conhecimentos de Hidrodinâmica com projetos para a construção de canais. Para tanto, estudou extensamente o movimento dos corpos através dos fluidos e discutiu os movimentos da água devidos à gravidade (ela tende sempre a dirigir-se ao local mais baixo). Formulou teorias sobre a formação das chuvas, tendo observado o congelamento da água e a evaporação devida ao calor.


Como inúmeros estudiosos de sua época, Leonardo buscou uma resposta para a questão: por que existe água no alto das montanhas? Em seu tempo ainda vigorava a teoria dos antigos filósofos gregos, segundo a qual o Universo seria formado pelos elementos terra, água, ar e fogo, dispostos nessa ordem. Assim, a terra estaria na parte "mais baixa", logo acima viria a água, seguida dos dois outros elementos.


A teoria explicava a existência de fontes no alto de montanhas admitindo que a superfície dos oceanos estaria acima do pico da mais alta montanha, sendo natural, portanto, que a água chegasse até lá, por canais subterrâneos.


Leonardo chegou a compartilhar essa explicação, calculando inclusive o desnível entre um mar e outro. Abandonou-a, no entanto, por chegar à conclusão contrária: considerou a água "embaixo" e afirmou que a superfície dos mares está em nível inferior ao das terras firmes. "O mar", dizia ele, é eqüidistante do centro da Terra e é a mais baixa superfície do mundo."
Ao colocar a água "embaixo" e a terra "em cima", Leonardo teve dificuldades em dar explicação para a existência de água no alto das montanhas. Tentou uma analogia com o que ocorre no corpo humano: "Assim corno o suor e o sangue sobem à superfície da face com o calor, é também pelo calor que a água "sobe pelas entranhas da Terra". Para demonstrar sua teoria, pôs uma bacia cheia de água dentro de um forno aquecido na parte superior. Com o calor, a água "subia" (evaporava-se) e saía por um tubo lateral.


Leonardo pensou em escrever um tratado sobre a água, mas deixou apenas anotações. Nelas indica explicitamente que o escoamento de um líquido num tubo ou num canal de seção irregular será mais rápido nas partes mais estreitas que nas mais largas. E exemplifica: "Se uma multidão caminha por um corredor em cujo extremo há duas saídas, uma dando passagem para um só homem e outra para quatro, é necessário que os que passam pela primeira o façam quatro vezes mais rapidamente do que os que vão pela segunda, para que o escoamento seja uniforme nas duas aberturas".


Leonardo reconheceu também a flutuabilidade dos cornos menos densos nos mais densos. Intuiu ainda o princípio da sustentação do "mais pesado que o ar", como conseqüência do movimento relativo (que estabelece uma diferença de pressão). Fez estudos sobre o vôo dos pássaros, acompanhando-os de desenhos muito pormenorizados; formulou teorias sobre a sustentação e a resistência, e suas hipotéticas aplicações num engenho que fizesse o homem voar.
Embora aceitasse a idéia dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo), ainda em voga na Idade Média, Leonardo refutou com seu raciocínio crítico muitas das fantasias que envolviam a organização e constituição do Universo. Não acatou, por exemplo, a teoria de Ptolomeu, segundo a qual o Universo seria formado de esferas concêntricas, tendo como centro a Terra, girando umas em torno de outras. Segundo Leonardo, o movimento relativo acabaria desgastando essas esferas.


Contestou igualmente a afirmação do filósofo grego Heráclito de Éfeso de que o Sol teria apenas 33 centímetros de diâmetro. Analisando os eclipses da Lua e o enorme curso do Sol, concluiu que esse astro não poderia ser tão pequeno assim.
Comparando a cor da luz solar com a do bronze fundido (tanto mais branco quanto mais quente), invalidou as teorias que defendiam ser o Sol uma estrela fria, pela simples razão de não exibir "cor de fogo".


Observou ainda que os raios solares atravessam o ar e a água (esta, em pequenas quantidades) sem sofrer absorção. Concluiu que os planetas, ainda chamados de estrelas, não têm luz própria, mas refletem a do Sol.


Enganou-se, entretanto, ao supor que a Lua não era atraída para a Terra, como as demais "coisas", por constituir em si mesma um "astro completo", possuindo terra, água, ar e fogo. A explicação para a permanência do satélite em sua órbita (decorrente do princípio da inércia) escapou inteiramente a Leonardo da Vinci.


"Este cavalheiro estudou anatomia mais do que qualquer pessoa, demonstrando por meio de desenhos a estrutura dos músculos, nervos, veias, juntas e intestinos de corpos, tanto de homens como de mulheres", dizia De Beatis a respeito de Leonardo, depois de visitá-lo no castelo de Cloux.


Como artista que levava o desejo da perfeição aos limites da obsessão, Leonardo estudou profundamente a anatomia, não só humana como de animais,
principalmente de cavalos. Segundo o testemunho de De Beatis, dissecou "mais de trinta corpos de homens e mulheres de todas as idades", numa época em que a dissecação era prática rara e mesmo mal vista, tendo sido condenada pelo papa Leão X.
Pesquisou a estrutura dos ossos, representando, em figuras, o tórax, a bacia, a coluna vertebral e o crânio que dissecou e desenhou segundo planos que ainda costumam ser usados em atlas anatômicos.


Examinou e descreveu os espaços vazios do maxilar superior e do osso frontal; observou alterações ósseas com a idade do indivíduo; estudou a posição dos ossos (particularmente dos artelhos) durante o movimento. Dedicou cento e quarenta desenhos à localização dos diversos músculos, que classificou em voluntários e involuntários; estudou a posição relativa de vasos, músculos e nervos.


Descobriu a glândula tiróide, embora não tenha entendido seu funcionamento. Percebeu a existência de outras glândulas, tendo-lhe escapado, no entanto, o pâncreas.
Analisando o sistema urogenital, fez observações notáveis sobre a placenta, o cordão umbilical e as vias de nutrição letal. Examinou ainda o sistema nervoso central e periférico, bem como os órgãos dos sentidos.


Estudou o coração, concluindo que esse órgão é massa muscular alimentada por artérias, possuindo veias, como os outros músculos.
Curiosamente, em Fisiologia, Leonardo não teve a mesma lucidez que em Anatomia. Alguns autores atribuem-lhe a descoberta da circulação sangüínea, mas, embora ele tenha descoberto todos os pormenores do aparelho circulatório, inclusive veias capilares, não chegou a perceber a função do coração como bomba propulsora do sangue. E isso talvez se devesse à analogia que fazia questão de ressaltar entre o sangue nos animais, a seiva nas plantas e a água no "corpo" da Terra.


Impressionado com sua descoberta de 24 músculos na língua, procurou analisar a posição desse órgão, dos lábios, dentes, traquéia e cordas vocais na pronúncia dos diversos fonemas, especialmente das vogais. Sejam ou não verdadeiras ou fundamentadas suas teorias, é notável que ele tenha se preocupado com assuntos ligados à Foniatria e Fonoaudiologia - ramos que foram estruturados como disciplinas científicas somente no século XX, e cujo campo de pesquisa é ainda muito vasto.


A Botânica também constituiu objeto de estudo para Leonardo. Conhecia certas propriedades dos vegetais, estudou a origem dos ramos menores a partir dos maiores, e a influência do ar, da luz solar, do orvalho e dos sais da terra na vida das plantas.


A Química (na época, ciência rudimentar) também mereceu a atenção de Leonardo, que desenvolveu estudos sobre transformações das substâncias. Realizou, ainda, experiências sobre a elasticidade e compressibilidade dos corpos, e reconheceu a água como incompressível.
Atribuiu grande importância à aplicação da Matemática para expressar as leis físicas, afirmando que "investigação alguma pode ser chamada de verdadeira ciência se não passar pelas demonstrações matemáticas". Menosprezava as ciências meramente verbais, dizendo que elas morrem ao nascer, e aconselhava que o estudo de uma ciência devia preceder qualquer de suas aplicações práticas.


Um aspecto curioso de grande parte dos manuscritos de Leonardo ilustra uma faceta de sua estrutura de pensamento: sendo ambidestro, ele escrevia as linhas tanto da esquerda para a direita como vice-versa. O modo incomum de redigir tornava mais difícil a leitura de seus manuscritos (era necessário recorrer a um espelho), mas, segundo Stefano De Simone, essa intenção escapou inteiramente a Leonardo. Ao escrever com a mão direita, ele expressava os resultados do estudo e da reflexão crítica; escrevendo com a mão esquerda, da direita para a esquerda, traduzia o que lhe vinha à mente espontaneamente.